sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Coisificadores de livros

Estou em crer que não temos melhores críticos de poesia não porque não temos melhores poetas mas porque temos muito, mas muito pouco espaço nos jornais para que se escreva sobre poesia e, já agora, sobre livros em geral. E o problema da nossa crítica e da nossa poesia talvez não seja a neutralidade - essa é uma percepção no mínimo limitada e talvez mesmo estúpida, até porque não estou certa de que um indivíduo possa alguma vez escrever sobre um livro que escolhe conscientemente recensear do ponto de vista de quem escreve sobre um sabonete e o mesmo sucede com o acto de escrever um livro, para mais de poemas - mas o facto de lhes ter sido confiado um papel de opinion makers, o que muitos deles nunca passarão de ser. Leitores de livros em barda, coisificadores de livros. E crítica é outra coisa ainda, bem diferente do que se lê em jornais ou na Ler. Não são 2000 ou 6000 caracteres que mudam isso.
Depois, a juntar a isto, o crítico regra geral debate-se com o problema de estar a escrever para uma massa crítica que vai do ausente ao escasso. E o crítico é só uma bengala. O que ele escolhe recensear devia referir-se a um público leitor. Ora, no caso da poesia, e até ver, o público leitor é muito o mesmo que produz versos. Neste aspecto, talvez já não haja a tão indesejável neutralidade no meio. Os poetas citados pelos críticos dos nossos jornais, nos últimos anos, são sempre os mesmos. Vende-se como novidade coisas que afinal retomam um discurso que vem de trás. E este discurso é até vendido com a mesma linguagem. Cite-se um caso que me parece paradigmático
Num meio em que tanta coisa se faz com uma escassez de meios tão grandes, qualquer publicidade, porque é isso que a nossa crítica se tornou sobretudo (sobre quase todos os livros, por quase todos os críticos), é preciosa. A revista Piolho é um caso paradigmático de um trabalho sobre essa escassez de meios. É uma fanzine pobre e feia, feita por amor à arte. Editam cinco números sobre os quais ninguém se deu ao trabalho de escrever uma linha. Ao sexto, certos nomes colaboraram com a revista, que é de imediato recenseada com cinco estrelas ou coisa que o valha. Os nomes citados são sempre os mesmos. Ao sétimo número, a Piolho torna a desaparecer. Não seria de acompanhar?
E aqui o erro do Manuel A. Domingos. Para os livros que não dispõem de uma campanha de marketing agressiva, e este tem sido sempre o caso da poesia, qualquer visibilidade é importante, porque é divulgação. A recensão é o máximo de publicidade que um pequeno/médio editor pode arriscar para um livro que tenha editado: custa o envio de livros a meia dúzia de críticos.
E onde o mesmo Manuel A. Domingos acerta ao lado é também quando diz que a maior parte dos poetas arrisca a crítica e que não o devia fazer. Num meio muito pequeno é natural que isto aconteça. As pessoas que se interessam por poesia são quase sempre as mesmas. Um leitor, poeta ou não, não se pode demitir de ler de modo crítico. O problema é outro. O problema é que o meio se torna profundamente viciado, quando quem escreve crítica é também escritor de poesia. As trocas de favores, se não eram inevitáveis, tendem a tornar-se mais que muitas. X não escreverá mal sobre Y porque receia o juízo de Y sobre o que ele próprio possa vir a escrever. A escreve sempre bem dos livros de B porque são amigos, vão aos copos juntos, porque A lhe liga a perguntar pela saúde do filho, etc. Claro que aparecem críticos que escrevem críticas menos positivas a determinados livros. Mas vejamos quem é que é alvo destas críticas. Gente que escreveu livros fáceis de criticar. Livros maus. O critério de exigência nem aqui é elevado.
A última coisa, e para mim a mais importante, é que poesia, para quem escreve e para quem lê, deveria necessariamente ser um acto de paixão, afastado de questões como a auto-promoção, o literatismo, a intriga que pulula no meio, de gente que adopta uma postura alternativa e marginal e na verdade é capaz das coisas mais mainstream, do elogio servil, gente que se legitima em grupo, dentro de um grupo, para o grupo e se aguenta com muito esforço fora dele, no sítio onde só existem os versos. Um crítico não deve ser um polícia de versos. Há meia dúzia de críticos que se têm arvorado nisso. O motivo porque gostamos de um poema - há poetas de merda que escreveram versos que nos dão prazer -, ou porque podemos vir a gostar de um poema, é vasto e indefinível, não devia haver nisto nada de prescritivo. Há críticos que adoptam esta posição. Como se pode então falar de neutralidade?
Apesar disso, o amor por um poema será sempre uma questão privada, onde, muito felizmente, estas vozes à margem não entram.

3 comentários:

  1. Cara M.C. Dioniso,

    muito obrigado pelo tempo dispensado na leitura dos meus textos.

    Cumprimentos

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  2. Caro Manuel A. Domingos,

    Não é minha intenção ofendê-lo e dou-me agora conta de que o meu último parágrafo está em tom agressivo. Apesar disso, é o que penso.

    Cumprimentos,

    Maria

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  3. Cara Maria,

    não me senti ofendido. pode ficar descansada.

    Cumprimentos

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