Para citar os versos mais banais de um poeta, fá-lo com algum fim pragmático, com ares de quem os ama. Por exemplo, para mostrar aos outros que és um literato, um erudito. Versos banais e fins pragmáticos. São coisas que combinam. Estão de acordo. Acontece o mesmo com um crítico que se socorra de metáforas fáceis. E arranja um jargão. Mots-clés, expressões a repetir. Piadolas. Etc. Sê banal, agradável. Destaca-te mas não muito, só o suficiente para garantir que todos dizem bem de ti. E, para maior aprovação, arranja meia dúzia de pessoas que sejam francamente fracas e de quem possas dizer mal. Isso ainda há-de gerar mais aprovação. Mais assentimentos de cabeça. O acenar canino e burro dos teus pares, que assim não se sentirão muito incomodados contigo. Eu penso nestas coisas, embora saiba que não são assim tão lineares. Estou a desmontar isto e a ver de que modos funciona.
O que interessa não está aí. São coisas feitas, por exemplo, da mesma matéria que aquele conto de Carver, em que ele narra a história de uns pais que perdem o único filho no dia do seu aniversário e que, naturalmente, tinham encomendado um bolo. Por desespero, acabam por ir à pastelaria com o fim de insultar o pasteleiro que não parava de lhes telefonar porque aquela encomenda ainda não tinha sido reclamada. A raiva deles, que é na verdade feita de dor, esbarra na compreensão do outro. Ele acaba por oferece-lhes pão, chá, conversa. Recondu-los a uma espécie de quotidiano. Um quotidiano destorcido, arruinado. Havia páginas nesse conto que tiveste de saltar. Pareciam irrespiráveis.
Voltas frequentemente a pensar nisso. É isto que te preocupa. Talvez haja em ti muita raiva gratuita, que não serve para nada, que não radica em nenhuma dor. Há muitas pessoas que têm assumido posturas inautênticas a partir disto. Dizem que estão cheias de raiva, falam de razões absolutas. Mas tocando em alguns pontos procuras o eco que isso gera quando é real e parece não estar lá. É uma sala de trono de final de tragédia japonesa: vazia. A raiva injusta cria a impressão de que alguma coisa te é devida. Pedro Salinas escreveu um livro que compraste em Madrid e que nunca abriste. Chama-se A Voz a ti Devida. Alguma coisa desta minha raiva, da minha zanga com o mundo, talvez possa ser posta na voz que te devo. Como hoje, quando me disseste que eu demonizo as pessoas. E é um pouco verdade. Mas eu preciso disso. Não só para me defender delas como para não dar o braço a torcer. Mas há pessoas com quem simplesmente não me interessa ter pontes. E então queimo-as. Assim, desta maneira ruidosa, incómoda, desajeitada e com um olhar de través. Talvez mais tarde arranje um modo limpo de fazer isso, sem as magoar. Porque eu reconheço isso, há pessoas que não é preciso magoar. Alguma pena tempera a minha muita raiva. A pena que impregna as pequenas destruições, as partidas inevitáveis, a impossibilidade de não ter em cada pessoa um par. A ideia de que o mundo pode ser um quarto que ora se encolhe ora se expande.
Sem comentários:
Enviar um comentário