domingo, 5 de fevereiro de 2012

Poeta fotografado em uniforme de prisão

Entrava numa cidade como um boi num palácio. Como uma criança numa loja de brinquedos. Queria gozar com as coisas, não procurava tirar nada delas. Dizer como as viu, que era para ele como elas são. Por isso foi esmagado. Nem a dignidade de ser fuzilado lhe foi concedida. Só o morrer anónimo em campo de trânsito. Convenientemente, sem efusão de sangue: a morte que os cobardes dão aos que lhes são verdadeiramente incómodos. Silenciosa, de aos poucos.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Wislawa


Ao atentar no modo como segurava a caneta, na ligeira inflexão determinada no canto dos lábios, dá-me uma dor numa coisa que tenho no tórax, alojada do lado esquerdo. Topa-se logo que esta semana perdi uma das minhas escritoras favoritas.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Coisificadores de livros

Estou em crer que não temos melhores críticos de poesia não porque não temos melhores poetas mas porque temos muito, mas muito pouco espaço nos jornais para que se escreva sobre poesia e, já agora, sobre livros em geral. E o problema da nossa crítica e da nossa poesia talvez não seja a neutralidade - essa é uma percepção no mínimo limitada e talvez mesmo estúpida, até porque não estou certa de que um indivíduo possa alguma vez escrever sobre um livro que escolhe conscientemente recensear do ponto de vista de quem escreve sobre um sabonete e o mesmo sucede com o acto de escrever um livro, para mais de poemas - mas o facto de lhes ter sido confiado um papel de opinion makers, o que muitos deles nunca passarão de ser. Leitores de livros em barda, coisificadores de livros. E crítica é outra coisa ainda, bem diferente do que se lê em jornais ou na Ler. Não são 2000 ou 6000 caracteres que mudam isso.
Depois, a juntar a isto, o crítico regra geral debate-se com o problema de estar a escrever para uma massa crítica que vai do ausente ao escasso. E o crítico é só uma bengala. O que ele escolhe recensear devia referir-se a um público leitor. Ora, no caso da poesia, e até ver, o público leitor é muito o mesmo que produz versos. Neste aspecto, talvez já não haja a tão indesejável neutralidade no meio. Os poetas citados pelos críticos dos nossos jornais, nos últimos anos, são sempre os mesmos. Vende-se como novidade coisas que afinal retomam um discurso que vem de trás. E este discurso é até vendido com a mesma linguagem. Cite-se um caso que me parece paradigmático
Num meio em que tanta coisa se faz com uma escassez de meios tão grandes, qualquer publicidade, porque é isso que a nossa crítica se tornou sobretudo (sobre quase todos os livros, por quase todos os críticos), é preciosa. A revista Piolho é um caso paradigmático de um trabalho sobre essa escassez de meios. É uma fanzine pobre e feia, feita por amor à arte. Editam cinco números sobre os quais ninguém se deu ao trabalho de escrever uma linha. Ao sexto, certos nomes colaboraram com a revista, que é de imediato recenseada com cinco estrelas ou coisa que o valha. Os nomes citados são sempre os mesmos. Ao sétimo número, a Piolho torna a desaparecer. Não seria de acompanhar?
E aqui o erro do Manuel A. Domingos. Para os livros que não dispõem de uma campanha de marketing agressiva, e este tem sido sempre o caso da poesia, qualquer visibilidade é importante, porque é divulgação. A recensão é o máximo de publicidade que um pequeno/médio editor pode arriscar para um livro que tenha editado: custa o envio de livros a meia dúzia de críticos.
E onde o mesmo Manuel A. Domingos acerta ao lado é também quando diz que a maior parte dos poetas arrisca a crítica e que não o devia fazer. Num meio muito pequeno é natural que isto aconteça. As pessoas que se interessam por poesia são quase sempre as mesmas. Um leitor, poeta ou não, não se pode demitir de ler de modo crítico. O problema é outro. O problema é que o meio se torna profundamente viciado, quando quem escreve crítica é também escritor de poesia. As trocas de favores, se não eram inevitáveis, tendem a tornar-se mais que muitas. X não escreverá mal sobre Y porque receia o juízo de Y sobre o que ele próprio possa vir a escrever. A escreve sempre bem dos livros de B porque são amigos, vão aos copos juntos, porque A lhe liga a perguntar pela saúde do filho, etc. Claro que aparecem críticos que escrevem críticas menos positivas a determinados livros. Mas vejamos quem é que é alvo destas críticas. Gente que escreveu livros fáceis de criticar. Livros maus. O critério de exigência nem aqui é elevado.
A última coisa, e para mim a mais importante, é que poesia, para quem escreve e para quem lê, deveria necessariamente ser um acto de paixão, afastado de questões como a auto-promoção, o literatismo, a intriga que pulula no meio, de gente que adopta uma postura alternativa e marginal e na verdade é capaz das coisas mais mainstream, do elogio servil, gente que se legitima em grupo, dentro de um grupo, para o grupo e se aguenta com muito esforço fora dele, no sítio onde só existem os versos. Um crítico não deve ser um polícia de versos. Há meia dúzia de críticos que se têm arvorado nisso. O motivo porque gostamos de um poema - há poetas de merda que escreveram versos que nos dão prazer -, ou porque podemos vir a gostar de um poema, é vasto e indefinível, não devia haver nisto nada de prescritivo. Há críticos que adoptam esta posição. Como se pode então falar de neutralidade?
Apesar disso, o amor por um poema será sempre uma questão privada, onde, muito felizmente, estas vozes à margem não entram.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

As coisas

Pensas na livraria visitada com uma amiga. Estas ruas vão desaparecer. Este eixo. E estou a ficar com gripe. Um primeiro grampo de febre prende os ombros. Deixa brilhantes os olhos, torna os pensamentos mais lentos. A sua engrenagem. Penso às vezes se as coisas que nos unem têm substância ou se estão acima da matéria. Os pensamentos não servem às vezes para tornar as coisas menos físicas. Conservam a sua presença. Conservam-nos em sua presença. O que também serve.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Os versos mais banais

Para citar os versos mais banais de um poeta, fá-lo com algum fim pragmático, com ares de quem os ama. Por exemplo, para mostrar aos outros que és um literato, um erudito. Versos banais e fins pragmáticos. São coisas que combinam. Estão de acordo. Acontece o mesmo com um crítico que se socorra de metáforas fáceis. E arranja um jargão. Mots-clés, expressões a repetir. Piadolas. Etc. Sê banal, agradável. Destaca-te mas não muito, só o suficiente para garantir que todos dizem bem de ti. E, para maior aprovação, arranja meia dúzia de pessoas que sejam francamente fracas e de quem possas dizer mal. Isso ainda há-de gerar mais aprovação. Mais assentimentos de cabeça. O acenar canino e burro dos teus pares, que assim não se sentirão muito incomodados contigo. Eu penso nestas coisas, embora saiba que não são assim tão lineares. Estou a desmontar isto e a ver de que modos funciona.
O que interessa não está aí. São coisas feitas, por exemplo, da mesma matéria que aquele conto de Carver, em que ele narra a história de uns pais que perdem o único filho no dia do seu aniversário e que, naturalmente, tinham encomendado um bolo. Por desespero, acabam por ir à pastelaria com o fim de insultar o pasteleiro que não parava de lhes telefonar porque aquela encomenda ainda não tinha sido reclamada. A raiva deles, que é na verdade feita de dor, esbarra na compreensão do outro. Ele acaba por oferece-lhes pão, chá, conversa. Recondu-los a uma espécie de quotidiano. Um quotidiano destorcido, arruinado. Havia páginas nesse conto que tiveste de saltar. Pareciam irrespiráveis.
Voltas frequentemente a pensar nisso. É isto que te preocupa. Talvez haja em ti muita raiva gratuita, que não serve para nada, que não radica em nenhuma dor. Há muitas pessoas que têm assumido posturas inautênticas a partir disto. Dizem que estão cheias de raiva, falam de razões absolutas. Mas tocando em alguns pontos procuras o eco que isso gera quando é real e parece não estar lá. É uma sala de trono de final de tragédia japonesa: vazia. A raiva injusta cria a impressão de que alguma coisa te é devida. Pedro Salinas escreveu um livro que compraste em Madrid e que nunca abriste. Chama-se A Voz a ti Devida. Alguma coisa desta minha raiva, da minha zanga com o mundo, talvez possa ser posta na voz que te devo. Como hoje, quando me disseste que eu demonizo as pessoas. E é um pouco verdade. Mas eu preciso disso. Não só para me defender delas como para não dar o braço a torcer. Mas há pessoas com quem simplesmente não me interessa ter pontes. E então queimo-as. Assim, desta maneira ruidosa, incómoda, desajeitada e com um olhar de través. Talvez mais tarde arranje um modo limpo de fazer isso, sem as magoar. Porque eu reconheço isso, há pessoas que não é preciso magoar. Alguma pena tempera a minha muita raiva. A pena que impregna as pequenas destruições, as partidas inevitáveis, a impossibilidade de não ter em cada pessoa um par. A ideia de que o mundo pode ser um quarto que ora se encolhe ora se expande.